O primeiro julgamento de Dilma Vana Rousseff se deu há 46 anos e foi
imortalizado em uma fotografia que estampou a capa do extinto jornal Última Hora
em 18 de novembro de 1970: aos 22 anos, a militante da luta armada
contra a ditadura militar encara com uma firmeza triste o tribunal,
enquanto os que a julgam escondem seus rostos da câmera. Dilma foi
torturada e condenada a seis anos de cadeia, dos quais cumpriu 28 meses,
até o final de 1972, no Presídio Tiradentes, em São Paulo. O segundo
julgamento de Dilma Vana Rousseff encerrou-se nesta quarta-feira. Às
13h35 o painel do Senado Federal confirmou o já esperado veredicto: por
61 votos a 20, ela foi condenada por crime de responsabilidade – e
definitivamente afastada do Palácio do Planalto. A postura dos juízes
deste 31 de agosto e o fato de Dilma ter sido eleita com pouco mais de
54 milhões de votos em outubro de 2014 escancaram a diferença
fundamental entre os dois períodos históricos: o Brasil é hoje uma
democracia. E um regime democrático não é simbolizado apenas pelo voto
popular. São as instituições que formam um Estado democrático de
direito.
Ao chancelar o processo que culminou na queda de
Dilma, as instituições brasileiras acabaram também por encerrar o ciclo
de poder do Partido dos Trabalhadores – uma sigla que, nos treze anos
que ocupou o Planalto, maior hegemonia de um partido desde a
redemocratização, tentou se apropriar do Estado. Em nome de seu projeto
de poder, o governo petista cometeu os crimes orçamentários que
embasaram a denúncia contra a presidente, ao praticar reiteradamente
pedaladas fiscais para maquiar contas públicas e esconder do país a
grave crise que se avizinhava, de modo a garantir a reeleição de Dilma
em 2014. Em nome de seu projeto de poder o PT institucionalizou o
assalto aos cofres da Petrobras e recebeu doações eleitorais disfarçadas
de empreiteiras como forma de lavagem de dinheiro. Em nome de seu
projeto de poder o PT fez uso de dinheiro desviado das estatais para
comprar parlamentares: o mensalão e o petrolão são, portanto, fruto da
tentativa petista de se perpetuar no poder. Três tesoureiros da sigla,
além de próceres petistas como José Dirceu, terminaram na cadeia em nome
desse projeto. A desgovernança dos anos de PT no Planalto semeou a
crise econômica e política pelas quais hoje o partido presta contas.
Ainda
assim, afora tímidas admissões de erros pontuais, o processo de
impeachment não resultou em um mea culpa do partido. Dilma e o PT
insistem em dizer que a democracia brasileira sofre um golpe, e que seu
impeachment representará uma ruptura institucional. Também vituperaram,
em uma versão ampliada do terrorismo eleitoral levado a cabo em 2014,
que Michel Temer acabaria com programas sociais e cortaria direitos
trabalhistas. Enunciado esperado de quem insiste na retórica irredimível
de que misteriosas “forças conservadoras” querem apeá-la do poder.
Ao
falar aos senadores na segunda-feira, Dilma afirmou: “Hoje, mais uma
vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores
da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura
democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a
violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da
violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste
aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas.
Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra
hipocritamente o mundo dos fatos”. Repetiu nove vezes a palavra ‘golpe’
ao longo de seu discurso discurso – e retomou o tom levemente arrogante e
professoral nas respostas aos senadores. Afirmou, como fez durante todo
o processo, que não cometeu crime algum.
O resultado da votação
de hoje é também reflexo do desprestígio do PT, que deixa o poder de
maneira melancólica, imerso em escândalos de corrupção. O quadro se
reflete na figura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, padrinho
político de Dilma: abandonado pelos amigos, indiciado pela Polícia
Federal e réu por tentar obstruir a Lava Jato, Lula esteve em Brasília
para tentar reverter votos em prol da pupila tanto na votação na Câmara,
em abril, quanto no Senado. Nos dois casos, o impeachment passou com
mais votos do que o mínimo necessário. Ainda assim, o partido obteve uma última vitória:
na reta final do julgamento, conseguiu emplacar com o ministro
Lewandowski o fatiamento da votação – Dilma perde, portanto, o cargo,
mas não ainda os direitos políticos. O que parlamentares dilmistas
conseguiram, de fato, uma nova interpretação da Carta Magna, a despeito
de o artigo 52 da Constituição estabelecer que, no impeachment,
aplica-se a “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o
exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais
cabíveis”.
Uma presidente isolada – Dilma
isolou-se desde que a Câmara deu prosseguimento ao impeachment. Desde
abril a petista entrincheirou-se no Palácio da Alvorada e evitava até
mesmo lidar com os servidores. A situação só piorou quando foi
formalmente afastada do poder pelo Senado. Como revelou VEJA em julho,
Dilma chegou a desabafar nos seguintes termos ao presidente do Senado,
Renan Calheiros (PMDB-AL), sobre o processo: “Quero acabar logo com essa
agonia”. Várias reuniões, almoços e jantares com senadores foram
organizados em busca de apoio para virar o jogo. Até a véspera da
votação ela fez corpo-a-corpo com senadores que se diziam indecisos. Sem
sucesso. Findo seu calvário, é em Porto Alegre, junto da filha e dos
netos, que Dilma planeja viver daqui para frente.
A receita para o
desastre contou ainda com a incapacidade da presidente impedida e de
seus assessores mais próximos de fazer com habilidade o jogo da
articulação política. Quando o impeachment desenhou-se uma onda
inevitável, já não lhe restavam mais soldados no Congresso, exceção
feita às bancadas do PT e do PCdoB, além de outros satélites que
escolheram morrer abraçados em troca de alguma moeda de troca da
política. E nem mesmo no partido ao qual se filiou em 2001 Dilma
encontrou refúgio: desde a posse esteve às voltas em constantes atritos
com a legenda, motivados pela falta de diálogo na elaboração de medidas
impopulares de ajuste fiscal.
Em seu discurso no Senado, ela não
fez nenhum aceno ao PT. Dilma ainda culpou diretamente o partido pelo
pagamento de caixa dois ao responsável pelas campanhas que a levaram ao
Planalto por duas vezes. Em resposta, o presidente nacional da sigla,
Rui Falcão, não hesitou em dar as costas a uma das principais bandeiras
de Dilma nos seus últimos momentos como presidente: a proposta de um
plebiscito para a convocação de novas eleições. Em clima de divórcio, a
legenda quer mesmo é virar a página da presidente condenada – sobretudo
para que os resultados da sigla nas eleições municipais de outubro não
sejam um completo fiasco.
O processo – O
impeachment consumado hoje é um processo jurídico-político e no
Congresso respeitou o amplo direito de defesa e o contraditório. Mas
fato é que o embasamento jurídico é apenas um requisito do processo de
impeachment. Esse processo, na essência, é político. E no campo da
política, Dilma se autoinfligiu todos os danos. A corrosão de seu
capital começou na campanha de 2014, quando ela mentiu aos eleitores
sobre a necessidade de consertos na economia. Seu segundo mandato
começou com ajustes de tarifas que ela prometera não fazer e um aumento
da inflação que ela jurou que não viria.
Por ironia da história,
partiu justamente da boca do senador Fernando Collor de Mello, ao qual
Dilma passa a fazer companhia na triste galeria de presidente condenados
pelo Senado, a declaração que resume o quadro, feita da tribuna na
terça-feira: “Além de infração às normas orçamentárias e fiscais, com
textual previsão na Constituição como crime de responsabilidade, o
governo afastado transformou sua gestão numa tragédia anunciada. É o
desfecho típico de governo que faz, da cegueira econômica, o seu
calvário, e da surdez política, o seu cadafalso”. Dilma teve a chance de
se cercar de bons tripulantes para realinhar seu barco durante o que
ela bradava se tratar de um período de ‘travessia’ e, sobretudo, erguer
pontes. Cai, portanto, vitimada pela própria incompetência.
A
votação de hoje resiste a qualquer questionamento. Ao longo de oito
meses, o governo teve ampla oportunidade de atacar na Justiça todos os
aspectos da tramitação do processo de impeachment. Seus argumentos foram
analisados pelo Supremo Tribunal Federal, acolhidos em alguns casos,
rejeitados na maioria. Ainda assim, a defesa da petista ingressará com
novo recurso na corte. O impeachment requer a maioria de dois terços do
plenário do Senado justamente para garantir que não paire nenhuma dúvida
sobre uma decisão de tamanha gravidade. Cabe à Casa o papel de
julgadora. Condenar uma presidente por crimes orçamentários passa uma
mensagem poderosa: a de que os governantes não recebem carta branca para
realizar seus planos de governo a qualquer custo quando ganham uma
eleição. Pela importância dessa mensagem para a ordem pública brasileira
é que os juízes de Dilma neste 31 de agosto fizeram questão de mostrar
os rostos.
Dilma Rousseff, aos 22 anos, responde a um interrogatório na sede da Auditoria Militar do Rio de Janeiro em 1970
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