Na
reta final para a Olimpíada, o Rio de Janeiro decretou estado de
calamidade pública, chamando a atenção para a gravidade da crise que
atinge as finanças do Estado menos de 50 dias antes de sediar para o
maior evento esportivo mundial.
O decreto do governador em
exercício Francisco Dornelles (PP), publicado nesta sexta-feira, cita a
"grave crise econômica", a "queda da arrecadação do ICMS e dos royalties
do petróleo", "severas dificuldades na prestação de serviços
essenciais" e a possibilidade de um "total colapso na segurança pública,
na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental".
Além
disso, o governador em exercício diz que a crise "vem impedindo o
Estado de honrar compromissos com os Jogos Olímpicos e Paralímpicos".
Para
especialistas consultados pela BBC Brasil, dois fatores explicam como o
Rio de Janeiro chegou ao rombo de R$ 19 bilhões em suas contas: a queda
na arrecadação e no recebimento dos royalties pela exploração do
petróleo e as falhas na gestão das finanças públicas estaduais.
Eles
também veem dois pontos cruciais por trás do decreto de calamidade
pública: a necessidade de obter verbas federais para custear obras
olímpicas e pagar servidores ao menos até os Jogos e a abertura de
caminho para que o governo estadual possa realocar recursos de serviços
públicos essenciais, como saúde e segurança, de áreas periféricas para
as regiões que sediarão as competições e concentrarão mais turistas.
A BBC Brasil lista quatro pontos-chave para entender a medida, que foi destaque na imprensa nacional e internacional:
1. Verbas federais
Dornelles se reuniu o presidente interino Michel Temer em Brasília na quinta-feira para pedir ajuda ao governo federal.
"Nós
apresentamos ao presidente interino Michel Temer as preocupações do RJ
no campo da mobilidade urbana e no campo da segurança. Pedimos tropas
federais no Estado e ajuda para a finalização do metrô", afirmou o
governador.
Diversos veículos de imprensa publicaram que, com o
decreto, o governo federal irá viabilizar de forma mais rápida um
socorro federal de R$ 2,9 bilhões ao Estado do Rio.
Os recursos
seriam usados para finalizar a ligação Ipanema-Barra da linha 4 do
metrô, pagar horas extras de policiais e garantir salários de servidores
ao menos até os Jogos.
Segundo o governador, porém, "ninguém
discutiu valor. O que houve foi um pedido do Estado do RJ em virtude de
sua situação critica na área financeira".
Jucá
Maciel, economista com pós-doutorado em finanças públicas pela
Universidade de Stanford (EUA), diz que é nítido que o Rio não
conseguirá sair da crise sozinho.
"O Estado do RJ vai precisar de
ajuda da União, já que não consegue cumprir suas obrigações mínimas em
dia, como pagamento de salários e aposentadorias. O rombo nas contas do
Estado é de R$ 19 bilhões e só R$ 7 bilhões dizem respeito a dívidas, ou
seja, somente deixar de pagar dívida, o que já ajuda outros Estados, no
caso do RJ não faz muita diferença", afirma.
A Secretaria
Estadual da Fazenda do RJ disse à BBC Brasil que o deficit atual é de R$
19 bilhões e que, deste valor, R$ 12 bilhões dizem respeito a contas do
Estado com a Rio Previdência e R$ 7 bilhões são de dívida pública. A
pasta informou ainda que o orçamento do Estado para 2016 é de R$ 78,8
bilhões.
Para Álvaro Martim Guedes, professor da Unesp
especialista em administração pública, o decreto aprovado por Dornelles é
parte de um acordo firmado entre o RJ e a União. "Há uma pactuação do
governo federal para que haja o repasse necessário para o RJ terminar as
obras olímpicas sem passar pelo crivo do Legislativo", diz.
A
conclusão da linha 4 do metrô necessita de mais R$ 1 bilhão - valor que o
Estado do RJ já havia obtido junto ao BNDES. O empréstimo, no entanto,
foi inicialmente vetado pelos deputados estaduais pelos impactos futuros
na já combalida economia fluminense. Mesmo após liberado pela Alerj, no
entanto, o repasse não foi autorizado pela Secretaria Nacional do
Tesouro devido ao nível de endividamento do Estado do RJ, que legalmente
o impedia contrair novos empréstimos com a União.
O custo total
está estimado em R$ 9,77 bilhões, e a obra, a mais cara da Olimpíada,
teve o valor elevado diversas vezes no decorrer dos trabalhos.
Em
visita ao Parque Olímpico nesta semana, Temer disse que a ajuda ao Rio
estava sendo "equacionada" e que o governo federal colaboraria para o
sucesso dos Jogos, inclusive de forma financeira.
Diante do não
pagamento de salários de servidores e parcelamento de benefícios nos
últimos meses, além da crise na saúde pública e na educação, o uso de
verbas federais para quitar obras olímpicas pode causar desgaste ao
governo estadual.
"(O decreto) tem o objetivo de obter mais
recursos e direcioná-los para obras que não são prioritárias para a
cidade. Enquanto isso, centenas de milhares de pessoas estão passando
por necessidades básicas, tanto servidores e terceirizados que não
recebem seus salários como a população em geral que sofre com a
precarização dos serviços públicos", diz Renato Cosentino, pesquisador
do IPPUR/UFRJ e membro do Comitê Popular de Copa e Olimpíadas.
2. Medidas excepcionais
Outro
ponto para entender o decreto é a possibilidade de execução de medidas
excepcionais sem autorização do Legislativo, como realocação de verbas e
cortes de serviços para priorização de outras áreas.
O segundo
artigo do decreto diz que "ficam as autoridades competentes autorizadas a
adotar medidas excepcionais à racionalização de todos os serviços
públicos essenciais com vistas à realização dos Jogos Olímpicos e
Paralímpicos Rio 2016".
"Eu vejo como um ato de desespero do
governador, para ter um mínimo de governabilidade, já que o Estado está
sem caixa e totalmente engessado com rigidez nas despesas, o que impede
cortes. O RJ não tem mais um orçamento, mas sim uma 'letra morta', sem
capacidade de honrar nada", diz Álvaro Martim Guedes, da Unesp.
À
dificuldade de cortes de despesas e queda na arrecadação, o que também
ocorre em outros Estados brasileiros, no Rio de Janeiro somou-se a
necessidade de garantir a realização dos Jogos Olímpicos.
Especialistas
indicam que o decreto de Dornelles poderá representar, na prática,
interrupção de serviços básicos em algumas áreas para realocar de forma
temporária os recursos para os Jogos sem que isso passe pelo voto dos
deputados estaduais.
"O que o governador quis fazer foi se
precaver de cometer alguma ilegalidade durante os Jogos caso tenha que
remanejar recursos de modo aparentemente sem critério. Pode-se imaginar a
retirada de recursos de áreas periféricas para priorizar os locais com
turistas, com possibilidade de transtorno. Assim garante-se equipes de
saúde e segurança pública nas áreas onde ocorrem os Jogos, mas pode-se
gerar um caos em outras áreas", diz Michael Mohallem, professor de
direito da FGV-Rio.
3. Falhas na gestão das finanças públicas
Na
visão dos especialistas, é impossível entender o cenário que levou o
Estado do RJ a decretar estado de calamidade pública sem levar em conta
falhas de gestão.
"O
Rio de Janeiro quebrou por excesso de gastos obrigatórios, aumento de
gastos com pessoal acima do permitido pela Lei de Responsabilidade
Fiscal, e não por endividamento. O governo fluminense também contou com
receitas temporárias, como os royalties do petróleo, para expandir
gastos permanentes, inchando a máquina", explica Jucá Maciel,
especialista em finanças públicas.
O professor da FGV-Rio Michael
Mohallem diz que a medida do governo do RJ é um "atestado de má gestão" e
"passa uma imagem terrível para o mundo" às vésperas da Olimpíada.
"Como
se não bastasse a imagem que o Brasil vem passando por conta do
processo de impeachment e da epidemia de zika, a cidade olímpica vai
entrar no período dos Jogos sob decreto emergencial", avalia.
Em
nota, o governo do RJ disse que o decreto "é mais uma medida de
transparência do Estado com relação à crise financeira" e que "trata-se,
portanto, de um instrumento inserido em um conjunto de providências
voltadas a demonstrar que o Estado não medirá esforços para otimizar a
gestão pública".
No Twitter, o prefeito do Rio, Eduardo Paes
(PMDB), disse que "o estado de calamidade decretado pelo Governo
Estadual em nada atrasa as entregas olímpicas e os compromissos
assumidos pelo Rio" e reiterou que as contas municipais estão em boa
forma.
Já o Comitê Rio 2016 informou ao jornal O Globo
que também não vê impactos. "É zero a chance dessa decisão impactar os
Jogos Olímpicos. O próprio Estado foi transparente ao fornecer as
informações relacionadas às finanças. Reconhecemos o impacto que a perda
de receitas com a queda do preço do barril de petróleo teve sobre o
tesouro estadual", disse Mário Andrada, diretor de comunicação do Rio
2016.
4. Queda na arrecadação, crise do petróleo e queda dos royalties
Citados
no próprio decreto e sistematicamente repetidos pela administração
estadual, a queda da arrecadação de ICMS em meio à crise nacional e os
abalos sobre o setor do petróleo são, de fato, ingredientes cruciais que
levaram o RJ ao momento atual, dizem especialistas.
A Secretaria
de Fazenda do Estado do RJ informou que no acumulado dos últimos 12
meses a arrecadação de ICMS caiu em torno de 10%. Já o barril do
petróleo, que nos últimos dez anos chegou a valer US$ 110, em 2015 caiu
para US$ 40.
Somando-se
a este cenário os abalos sobre a Petrobras com a operação Lava Jato e a
queda dos royalties pelas atividades de exploração no RJ, o Estado
amargou grandes perdas.
"Na minha opinião o Estado estaria
quebrado neste momento independente de haver Olimpíada ou não. A
dependência excessiva do petróleo, os impactos da crise nacional, a má
gestão, o inchaço da folha de pagamento além do permitido pela Lei de
Responsabilidade Fiscal, são todos fatores que levariam à quebra do Rio
de Janeiro de qualquer forma", diz Jucá Maciel.
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