Quando
a energia elétrica chegou à favela Santa Marta, às sombras da estátua
do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, a moradora Cândida Oliveira
Silva, que há tempos vive lá, ficou feliz por receber a conta de luz.
Para
a dona de casa de 52 anos, ela significava ter um comprovante de
endereço e poder “se sentir cidadã” pela primeira vez. Mas, nos últimos
meses, tem significado também reduzir todo tipo de despesa, mesmo as
mais básicas. A redução dos subsídios e a seca que atinge várias regiões
do país fez com que sua conta mensal subisse para R$ 280, quase cinco
vezes mais do que era há um ano.
“Eu
não posso mais viajar, não posso mais pagar para comer fora nem mesmo
num restaurante simples”, diz ela. A inflação em alta e a forte
desvalorização do real já aniquilaram qualquer chance de ela visitar sua
filha que mora em San Francisco, nos Estados Unidos.
A
dificuldade que Silva enfrenta para manter seu padrão de vida em meio
ao aumento dos preços mostra como a crise econômica que vem se agravando
tem prejudicado a classe média do país.
O
nível de desemprego nas áreas urbanas subiu para 7,6% em setembro, que
juntamente com agosto é a maior taxa em cinco anos. Na média, os
economistas esperam que o produto interno bruto recue 3,1% este ano e
1,9% no próximo, de acordo com a pesquisa semanal mais recente feita
pelo Banco Central do Brasil. A inflação, que se aproxima da taxa de 10%
ao ano, tem forçado as classes mais baixas a deixarem de comprar carne e
o BC a elevar as taxas de juros. Esforços desorganizados do governo
para conter o crescente déficit do orçamento resultaram em aumentos de
impostos dolorosos, apertando ainda mais a renda familiar.
Especialistas
dizem que é difícil estimar quantas pessoas podem ser rebaixadas de
classe social, já que não há dados oficiais disponíveis. Mas com os
salários subindo menos que a inflação, cerca de 35 milhões de pessoas
que integram a classe média baixa estão vulneráveis, diz Maurício Prado,
sócio da firma de pesquisa Plano CDE. “Elas têm baixo nível educacional
e pouca experiência com trabalho formal”, diz ele. “Há uma confluência
de fatores negativos.”
A
situação ameaça tirar dos trilhos o que os líderes brasileiros vinham
exaltando como a transformação da sociedade e da economia do país. Há
tempos considerado um dos países com maior desigualdade no mundo, o
Brasil fez significativos progressos nos últimos dez anos no sentido de
reduzir a disparidade de renda, afirma as autoridades.
Os
preços altos das commodities exportadas rechearam os cofres públicos
com recursos que foram utilizados para tecer uma rede de segurança
social, incluindo o programa Bolsa Família, que envolve cerca de 14
milhões de famílias de baixa renda. O reajuste do salário mínimo em mais
de 11% ao ano desde 2003 permitiu a transferência de mais riqueza para a
base da pirâmide.
Entre 2003
e 2013, a mediana da renda familiar no Brasil subiu 87% em termos
reais, em comparação com uma alta de 30% per capita do PIB, diz Marcelo
Neri, economista autor do livro “A Nova Classe Média – o Lado Brilhante
da Pirâmide” (Editora Saraiva) e foi ministro da Secretaria de Assuntos
Estratégicos entre março de 2013 e fevereiro de 2015.
“As
pessoas que foram deixadas para trás — pessoas com baixo nível
educacional, pessoas do Nordeste e de áreas rurais, trabalhadores
domésticos, trabalhadores informais — essas pessoas cresceram a um ritmo
mais rápido do que o país como um todo”, diz Neri.
A
classe média brasileira é muito mais pobre do que a de outros países,
como por exemplo a dos EUA, com a renda média variando entre R$ 2.300 e
R$ 9.500 por mês. Mas ela era composta por 67,9 milhões de pessoas em
2003 e esse número saltou para 112,6 milhões em 2013, de acordo com
estimativas do governo.
Comunidades
como a da favela Santa Marta exemplificam essa tendência. Apresentado
como um local de extrema pobreza em no vídeo da música “They Don’t Care
About Us”, de 1996, do cantor Michael Jackson, hoje ela conta com
escolas, centros de atividades, programas habitacionais do governo e
bondes que levam os moradores para o alto do morro da favela. A maioria
das casas tem eletrodomésticos como TVs e refrigeradores, o que pela
metodologia dos cientistas sociais brasileiros os classifica como
integrantes da “Classe C”
“Eu
não posso dizer que as coisas estão muito ruins, porque para mim elas
melhoraram”, diz Uerlem Queiroz, de 27 anos, que trabalha como
cameraman. Ele pretende passar o Ano Novo em Salvador, uma viagem que
segundo ele era “inimaginável” para um morador de favela no passado.
Paradoxalmente,
economistas dizem que as mesmas políticas que tiraram milhões de
brasileiros da pobreza nos últimos anos também ajudaram a alimentar a
inflação que hoje corrói seus padrões de vida. O nível de produtividade
do trabalho no Brasil ficou bem atrás do de outras economias emergentes,
revelando a base instável em que foi criada a nova classe média.
“Tendo
passado por um período ao longo dos últimos dez anos, quando os
trabalhadores conseguiram uma fatia maior do bolo que crescia, agora
eles vão ter uma fatia menor do bolo que está crescendo num ritmo muito
menor”, diz Neil Shearing, economista-chefe de mercados emergentes da
Capital Economics.
Medidas de
austeridade tornaram o sistema tributário brasileiro mais regressivo,
abocanhando a renda das famílias da classe média e da classe baixa. Em
busca de reforçar sua receita, o governo tem aumentado os impostos sobre
o crédito ao consumidor, importações e alguns produtos manufaturados.
Ele também pressionou as pessoas com renda mais alta ao reajustar a
tabela do Imposto de Renda em 4,5%, menos que a metade da taxa da
inflação.
O número de
brasileiros com dívidas em atraso subiu para 57 milhões em setembro, ou
39% da população adulta do país, segundo o SPC.
Uma
dessas pessoas é Maria Eliane de Alcântara, uma faxineira de 46 anos
que vive em Santa Marta. Depois de tomar um empréstimo com taxas de
juros exorbitantes para reformar sua casa de madeira, hoje seu orçamento
para alimentos não consegue ir muito além das compras de arroz e
feijão.
“O dinheiro entra e já sai”, diz ela. “E eu ainda devo dinheiro ao pedreiro.”
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