O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou nos holofotes durante o
julgamento do escândalo do mensalão em 2012 e desde então nunca mais
saiu. As sessões transmitidas ao vivo fizeram com que as atenções dos
brasileiros se voltassem à Corte. Se por um lado o evento passa uma
imagem de transparência nos procedimentos, especialistas matizam a
percepção e veem espaço para que o STF amplie suas práticas
democráticas. A última polêmica envolvendo o tribunal aconteceu no
início do mês.
O decano Celso de Mello decidiu contrariar sozinho
uma decisão do plenário da Corte que havia sido tomada em fevereiro
deste ano. À época, por 7 votos a 4, os ministros entenderam que as
penas podiam começar a ser cumpridas após confirmação da sentença em
segunda instância. Em junho, no entanto, Mello mandou soltar um homem
condenado por homicídio que já cumpria pena. A expectativa agora é que a
Corte volte a discutir o assunto.
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Não
é o único caso controverso. Sobram dúvidas sobre os critérios das
escolhas feitas pelo STF. Por que o tribunal demorou cinco meses para
analisar o pedido de afastamento do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ)? O ministro Gilmar Mendes
poderia ter segurado por 20 meses o processo sobre o fim do
financiamento empresarial de campanha após pedir vista? E um dos
processos contra o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL),
acusado de peculato e falsidade ideológica, que aguarda parecer dos
ministros há mais de três anos? Veja abaixo o que pensam especialistas
sobre esses problemas.
O timing da corte
Não
existe nenhum critério objetivo para determinar o que e quando será
votado no STF. Thomaz Pereira, professor de direito da Faculdade Getúlio
Vargas do Rio de Janeiro, explica que “cabe ao presidente e seus pares
julgar aquilo que entendem ser adequado, e claro que há influencia de
uma possível pressão social”. Neste cenário, ministros podem dar maior
ou menor importância a uma determinada questão, de acordo com seus critérios pessoais.
“Quando você tem um tribunal com muita liberdade para escolher o que e
quando julga, ele passa a ter o ônus de explicar suas decisões para a
sociedade”, afirma Pereira. “É preciso que a Corte diga a razão de um
pedido de liminar ter sido julgado em dias e um outro semelhante não ter
sido analisado ainda anos depois de ter sido protocolado”.
Uma
justificativa frequentemente evocada pelos ministros para a morosidade
no andamento de alguns casos é o grande volume de processos no tribunal.
Pereira afirma que isso não pode ser um argumento para a lentidão, e
cita o caso da Suprema Corte dos Estados Unidos
como uma corte que tem critérios mais rígidos na seleção dos casos.
“Eles têm muito controle sobre o que julgam e o que não julgam, aceitam
poucos casos por ano”, diz o professor. Uma das consequências disso é
que “tudo o que admitem é julgado, a previsibilidade é muito grande,
você sabe que o processo será analisado no decorrer daquele ano
judiciário”.
Em nota, a assessoria da Corte informou que o
regimento interno do STF "determina que os Habeas Corpus, seguidos pelas
causas criminais e as reclamações têm preferência na pauta de
julgamentos do plenário e das turmas", e que após estes casos "o
ministro Ricardo Lewandowski, durante a sua gestão, tem priorizado as
questões de repercussão geral, que são aquelas de relevância social,
econômica, política ou jurídica".
Sabemos que todos os Governos desde a redemocratização negociaram essas nomeações [para o STF] com suas respectivas bases políticas
Fiscalização da sociedade
Para
o jurista Dalmo de Abreu Dallari esse é um dos maiores problemas do
STF. Atualmente a Constituição prevê que o presidente indique um nome
para ocupar a cadeira de um ministro que aposenta, e cabe ao Legislativo
sabatinar o escolhido. Neste ponto o Brasil se inspirou no modelo de
Corte Suprema dos Estados Unidos. “Isso acaba tendo implicações
políticas, sendo que o correto é que fosse uma escolha jurídica”, avalia
o advogado. Ele defende que “a comunidade jurídica fosse ouvida", e que
"elaborasse via voto uma lista tríplice, da qual o Executivo escolheria
um nome”. Para Dallari, isso “acabaria com aquele estigma de ‘fulano é
ministro da Dilma Rousseff’, ‘fulano é ministro do Fernando Henrique Cardoso”.
Marcelo
Cattoni, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de
Minas Gerais, aponta outro problema crítico neste modelo de escolha de
ministros. “Sabemos que todos os Governos desde a redemocratização,
negociaram essas nomeações [para o STF] com suas respectivas bases
políticas”, afirma. De acordo com ele, a consequência disso é que a
muitas indicações acabam sendo feitas para atender interesses imediatos
com relação à composição de base parlamentar, “algo típico do nosso
presidencialismo de coalizão”. Logo “nem sempre as nomeações recaem
sobre grandes especialistas”.
Para Cattoni, caberia à sociedade
fiscalizar esse fenômeno para impedir que aconteça, e “o Senado precisa
sabatinar de forma séria os indicados”. O professor cita a sabatina do ministroÉdson Fachin em maio de 2015 como uma exceção: o procedimento durou sete horas, e foi marcado por duros questionamentos.
Em alguns casos uma série de medidas liminares são tomadas por um ministro, ou são concedidas ou negadas liminares monocraticamente, e isso não é encaminhado para o plenário
O
professor Fabrício Juliano Mendes, do Centro Universitário de Brasília,
discorda dos colegas. Para ele, o fato da indicação ser feita pelo
Executivo não é garantia de que o juiz seja alinhado com a presidência.
“Ao tomar posse no Supremo os ministros gozam de vitaliciedade no cargo,
o que permite que ele exerça a magistratura de acordo com seu livre
pensar. Nada o obriga a rezar a cartilha de quem o indicou”, afirma.
Além disso, Mendes cita a sabatina como um processo que confere
legitimidade ao processo, uma vez que os senadores são eleitos pelo povo
e tem a prerrogativa de não aprovar determinada indicação.
O
ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, já defendeu publicamente o
atual modelo de indicação, e disse que a politização das indicações pelo
Executivo pode acontecer em teoria, “mas a verdade é que no mundo real
não acontece”. Existe na Câmara Federal uma Proposta de Emenda à
Constituição que a alternância nas indicações entre o presidente da
República e o Congresso Nacional na escolha dos ministros.
Decisão monocrática e poder do relator
Outro ponto questionado pelos especialistas é o grande número de decisões monocráticas
[tomadas por apenas um ministro] proferidas na Corte. “Em casos
excepcionais a decisão monocrática é necessária, pois trata de assuntos
urgentes, e remeter a questão à turma ou ao plenário leva tempo, estudos
e pareceres”, afirma Dallari, que defende seu uso restrito a casos
especiais nos quais o tempo é realmente um fator chave – como processos
que envolvem prisões, por exemplo.
Se constrói uma cultura entre o Ministério Público, juízes e advogados, na qual ninguém cobra ninguém
Cattoni
afirma que reformas processuais pelas quais os tribunais brasileiros
passaram desde os anos de 1990 atribuíram muito poder aos juízes
relatores – que são responsáveis por determinados casos. “Eles podem
tomar uma série de decisões monocráticas, que depois precisariam ser
referendadas pelo plenário”, diz o professor. Caberia ao relator pedir
para que essa decisão “seja incluída na pauta, o que muitas vezes não é
feito”. “Em alguns casos liminares são concedidas ou negadas
monocraticamente, e isso não é encaminhado para o plenário”, afirma.
Pedido de vista sem prazo para devolver
O regimento interno do Supremo estabelece prazos para que um ministro possa analisar um processo após pedir vista.
“O problema é que eles não são cumpridos”, diz Cattoni. “Qualquer
advogado nesse país dirá informalmente: prazo existe para as partes,
dificilmente para os juízes”. De acordo com ele, “há quem diga que as
partes não cobram os prazos por medo de se indispor com os juízes em uma
instância na qual isso pode ser desastroso, já que não se pode recorrer
a nenhuma corte superior”, afirma. Nestes casos, “se constrói uma
cultura entre o Ministério Público, juízes e advogados, na qual ninguém
cobra ninguém”.
Pereira, da FGV, afirma que esse problema poderia
ser resolvido com o cumprimento do regimento - 20 dias para cada pedido
de vista -, e a devolução imediata do processo após o término do prazo.
"Em um sistema como o nosso, em que os ministros estão entre iguais e
não há ninguém para obrigá-los a cumprir as normas, é preciso que eles
assumam responsabilidades individuais para cumprir os prazos do
regimento". De acordo com projeto Supremo em Números, da FGV-Rio, só 20%
dos processos são devolvidos no prazo.
Dalmo afirma que “é normal
que em casos mais complexos o julgador queira algum tempo extra para
fazer exame pormenorizado do processo”, mas que o que se vê no STF é a
“haja possibilidade de engavetamento de processos por meses”. Para o
jurista, o regimento interno da Corte é vago quanto aos prazos, por isso
haveria a necessidade de que fossem “fixadas normas regimentais mais
rígidas”.
Em nota, a assessoria do tribunal afirmou que "não
ocorrendo a devolução após o período, o presidente do Tribunal ou das
Turmas comunicará o ministro sobre o vencimento do prazo".
Antecipação de voto antes ou durante um processo
“Acho
a antecipação do voto maléfica. Deve ser sempre lembrada uma frase que
é: ‘juiz só fala nos autos”, diz Dallari, que ressalta, no entanto, que
isso é cada vez mais comum por parte de alguns ministros. “Juiz dando
entrevista, participando de reunião com políticos, isso é altamente
prejudicial para a preservação da independência do Judiciário e de sua
imagem, é uma prática negativa”, afirma. O jurista acredita, no entanto,
que essa deve ser “uma questão ética, não pode ser regimental, senão há
um cerceamento do direito do juiz. Ele precisa tomar consciência de
seus deveres”.
Cattoni afirma que a lei orgânica da magistratura
proíbe que o juiz antecipe seu voto, por entender que isso seria “uma
violação do dever funcional”. “Mas isso não é punido”, diz o professor.
Qualquer uma das partes que se sentir atingida pelas declarações de um
juiz pode pedir a suspeição ou impedimento do magistrado – que poderia
implicar no seu afastamento de determinado caso. “Um dos casos de
suspeição previsto na legislação é aquele em que o juiz se apresenta
publicamente como inimigo declarado de alguma das partes”, explica. Mas
novamente aqui a questão esbarra em um desejo de advogados e do MP de
não se indispor com os magistrados.
Em nota, a assessoria do
Supremo afirmou que é vedado aos juízes “manifestar, por qualquer meio
de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de
outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de
órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou
no exercício do magistério”. De acordo com o texto, a responsabilização
dos ministros do STF, "no caso de infrações de natureza
político-administrativa, compete ao Senado Federal".
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