A corrupção e a
disputa por "poder a qualquer custo" exibidas na série norte-americana
"House of Cards", da Netflix, se repetem em Brasília, afirmou o ministro
Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, à BBC Brasil.
"Estamos
vivendo um momento delicado, complexo e surpreendente. Não se esperava
tal estado de deterioração", afirmou o magistrado após a aula inaugural
do curso de Direito do IDP (Instituto de Direito Público), em São Paulo.
Mendes,
que é coordenador científico do instituto, convidou o vice-presidente
Michel Temer (PMDB) para apresentar a aula magna a uma plateia lotada,
composta principalmente por magistrados e personalidades da política, do
Direito e do empresariado.
Na
abertura do evento, ambos mostraram intimidade. O ministro classificou o
peemedebista como "um dos mais sábios pensadores do país", "um mestre
que nunca se afastou da academia". Temer lembrou que a amizade é antiga:
"Nos conhecemos há mais de 30 anos".
Na
fala de quase uma hora, o vice-presidente defendeu um modelo político
que daria mais poder ao Congresso, que classificou como "quase
semiparlamentarismo".
“O
Legislativo passaria a participar ativamente do governo. Não teríamos os
problemas que temos hoje”, disse Temer, que não atendeu aos pedidos de
entrevistas de jornalistas, nem comentou a polêmica carta que escreveu à
presidente Dilma Rousseff, na qual reclamou ter sido tratado como um
"vice decorativo".
Questionado
pelos jornalistas, Mendes afirmou que Temer "certamente seria um bom
presidente da República", ressaltando que não emitiria "juízos" a
respeito.
Para o ministro, a
decisão do STF sobre a tramitação do impeachment será rápida. “O
tribunal está consciente do momento delicado pelo qual estamos
passando", disse. "Não acredito que haverá pedido de vistas."
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Na conversa com a
BBC Brasil, Mendes comentou ainda as acusações de que Eduardo Cunha,
presidente da Câmara, estaria usando o cargo para dificultar as
investigações da Operação Lava Jato contra si.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil
- Como vê o pedido de avaliação do processo de impeachment pelo STF?
Por que o senhor vem recomendando cautela e distanciamento?
Gilmar Mendes -
Porque este é um tema fundamentalmente político e nós não devemos fazer
uma regulação exaustiva desse tema. Já tivemos um outro grave
incidente, com precedente judicial, no caso Collor. E o tribunal
considerou que o Congresso agiu com correção, tanto a Câmara quanto o
Senado, aplicando a lei. Em princípio, não cabe substituir o Congresso.
Lamentavelmente,
o Congresso não fez uma nova lei, a lei atual é de 1950 (a lei 1.079,
conhecida como "Lei do Impeachment"), que já passou pela segunda
Constituição e continua regulando o tema.
Temos
que ter muita cautela nessa hora. A judicialização é natural,
especialmente nesse momento de conflagração, mas acredito que o tribunal
tem que ser severo se houver vilipêndio ao direito de defesa, ao
comprometimento de lineamentos básicos do processo. O mais cabe ao
Congresso.
BBC Brasil
- Sobre Eduardo Cunha: parte dos magistrados nota indícios de que o
presidente da Casa obstruiria investigações. Outra parte diz que isso
não estaria acontecendo. De que lado o senhor está?
Gilmar Mendes -
Isso tem que ser devidamente sopesado (avaliado). Já houve discussão de
atos que constituiriam obstrução de investigação propriamente na
investigação criminal. Falou-se até que o procurador-geral considerava
pedir medidas de afastamento ou suspensão das atividades, mas isso não
ocorreu.
Agora esse tema
voltou, tendo em vista os incidentes na Comissão de Ética, que são
lamentáveis, como também os incidentes na comissão especial de
impeachment. Todos nós estamos vendo tudo isso chocados, conflitos
corporais, físicos. Mas vem a pergunta: quem será o legitimado para
fazer essa provocação ao tribunal?
Além
de se investigar se de fato ele está usando as prerrogativas para se
proteger, tem que se investigar quem seria o órgão legitimado para levar
isso ao tribunal. Seria um órgão da Câmara, a Comissão de Ética, o
procurador-geral? Aqui estamos não num processo criminal, mas num
processo administrativo. O que se discute lá é a investigação
parlamentar, para levar a perda do seu mandato. Isso precisa ser
discutido, a questão não foi levada ao tribunal, nem na investigação dos
inquéritos judiciais, nem agora. Não houve submissão, portanto vamos
aguardar.
BBC Brasil - Um partido político estaria "legitimado" a levar a questão ao Supremo?
Gilmar Mendes -
A questão é essa: quem teria legitimidade, uma vez que se cuida de
procedimento parlamentar. Essa é uma questão administrativa e inusitada,
não temos precedentes. Então, isso terá que ser examinado. Certamente,
se chegar um pedido deste, o relator (no STF) submeterá a matéria a
análise.
BBC Brasil - O senhor assiste à série "House of Cards"? Que paralelo enxerga entre a série e Brasília?
Gilmar Mendes -
Sim. Muitos jornalistas fazem essa comparação, até identificando
personagens. De certa forma, vemos isso (o que aparece na série) no
mundo político, né? Talvez ali eles sejam mais realistas, mas nos
romances que tratam da vida política a gente encontra esse quadro.
Estamos vivendo um momento delicado, complexo e surpreendente. Não se esperava tal estado de deterioração.
BBC Brasil - Deterioração no Executivo ou Legislativo?
Gilmar Mendes - No sistema político como um todo. A profundidade que a Lava Jato tem revelado é extremamente grave.
BBC Brasil - Esse contexto de deterioração traz um protagonismo ao Supremo que não se via há tempos.
Gilmar Mendes -
A Constituição já permite esse protagonismo. O protagonismo na área
penal vem desde o mensalão. O julgamento foi muito singular, com chefe
da Casa Civil (o petista José Dirceu), parlamentares líderes de
governo...
Agora estamos
tendo essa situação que revela uma verdadeira metástase. De novo, o
tribunal volta ao protagonismo pelo envolvimento de uma série de
políticos.
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BBC
Brasil - O senhor já mostrou várias vezes simpatia às teses de
afastamento da presidente. Neste domingo, protestos contra a presidente
acontecerão no Brasil inteiro. O senhor já participou? Participaria
deste?
Gilmar Mendes -
Não, não, não. Eu emiti alguns juízos a propósito dos abusos cometidos e
verificados na Justiça Eleitoral. Foi muito enfático: eu fui o relator
das contas da presidente e depois vi a ação de impugnação do mandato
porque a relatora dizia que não via fundamentos. Eu fui enfático: aquilo
tinha que ser investigado. Se afinal ela vai ser absolvida ou condenada
na Justiça Eleitoral é outra questão.
O
que achei é que era fundamental que o tribunal abrisse o processo para
que as provas viessem. Tendo em vista todos os fatos colocados, por
exemplo a possibilidade de ter usado doações de campanha advindas de
propina da Petrobras. Isso precisava no mínimo ser investigado.
BBC Brasil - Qual foi o último protesto ou manifestação que participou?
Gilmar Mendes -
Ah, isso já faz muito tempo. Alguma coisa na universidade, à época
Brasília era muito agitada, estou falando dos anos 1970, o enterro de
Juscelino Kubitschek, ia muito a manifestações no Congresso Nacional.
Depois assumi funções públicas.
BBC Brasil - As funções públicas inibem esse tipo de atuação política nas ruas?
Gilmar Mendes - Tem que ter uma contenção, né? São funções públicas de relevo.
BBC
Brasil - As diferenças entre os ministros do Supremo - alguns mais
simpáticos ao impeachment, outros menos, alguns simpáticos ao
afastamento de Cunha, outros menos - dificultam a atuação do tribunal?
Gilmar Mendes -
Acho que não. O tribunal vai conseguir uma unidade, ou pelo menos um
consenso básico em todas as matérias. Acho que todos são pessoas com
muita experiência na vida pública, na vida política, e saberão
dimensionar as decisões e suas consequências no momento histórico que
estamos vivendo.
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