Tramitam no Congresso Nacional 89 propostas de parlamentares que visam a alterar a Lei Maria da Penha, que neste domingo, 7, completou dez anos de promulgação. Os projetos, 68 da Câmara e 21 do Senado, têm os mais diferentes teores: de penas mais duras a quem descumprir medidas protetivas concedidas às mulheres ao fornecimento de “botões do pânico” a vítimas de violência. Organizações argumentam que as mudanças na lei, criada a partir de discussões da sociedade civil em 2006, são temerárias por terem dispensado um amplo debate público.

Uma das alterações que têm atraído mais atenção e críticas é o Projeto de Lei da Câmara 7/2016, de autoria do deputado Sérgio Vidigal (PDT-ES). A proposta pretende prestar assistência qualificada a vítimas de violência doméstica ao prever que, por exemplo, o atendimento em delegacias seja feito somente por mulheres, além de outras formas de apoio.

Mas foi outra informação no texto da proposta que causou reação das entidades de direitos da mulher: delegados de polícia poderão conceder medidas protetivas de urgência a vítimas, prerrogativa hoje reservada a juízes. “Às vezes, a mulher faz a denúncia e tem de voltar para dentro de casa. E aí tem de voltar a conviver com o agressor, e há casos de algumas que foram até assassinadas esperando a decisão”, disse Vidigal ao Estado.

Para ele, a concessão pode ser feita “sob caráter excepcional”, até apreciação do caso por um magistrado. O deputado disse entender que a proposta faz com que os delegados “extrapolem um pouquinho suas atribuições”. “Mas não temos juízes de plantão 24 horas em muitas cidades para tomar decisões no momento. Temos de proteger a vida das pessoas”, disse.

O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em junho e está pronto para ir a votação na Casa. Para a assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) Masra de Abreu, as medidas protetivas são concedidas em um “tempo razoável”. “O que estamos vendo é uma briga entre categorias por equiparação salarial”, disse. “A violência para a polícia é entendida quando a mulher chega toda quebrada, mas há também outros tipos que são desconsiderados. Mas, talvez para os delegados liberar ou vetar a medida, a mulher terá de chegar com marcas de agressão.”
Masra criticou ainda outras tentativas de alteração na lei que endurecem penas aos homens autores de agressão. “Muitos projetos tentam alterar a Lei Maria da Penha, mas o que vemos é que vários são policialescos, buscando aumento de pena e restrição de espaço da mulher, sem atingir uma questão estrutural da violência. Discutimos sempre depois de que já aconteceu”, disse.A crítica sobre a ausência de participação social nas mudanças é compartilhada pela representante da ONU Mulheres no Brasil, entidade das Nações Unidas para Igualdade de Gênero, Nadine Gasman. “Não dá para mudar a lei, especialmente sem a participação das mulheres que ajudaram a criá-la”, disse.

Para Nadine, “a lei mais conhecidas pelos brasileiros” pode surtir mais efeitos se mecanismos que estão previstos em seu textos sejam de fato implementados. “Temos uma lei que não foi implementada em sua totalidade. Há muito ainda por fazer. Os centro de referência não são tão conhecidos, assim como a ideia da rede de serviços. Temos Estados e municípios com diferentes níveis e precisamos buscar uniformizar a qualidade”, afirmou.

Apoio

Apesar das reações das entidades, a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Câmara federal, deputada Gorete Pereira (PR-CE), demonstrou entusiasmo sobre as possibilidades de mudança. “Agressão é caso de polícia também, tem de inibir imediatamente. O aumento das penalidades faz com que o homem pense antes de cometer uma violência contra a mulher. E vai ficar cada vez pior.”

Entre as propostas que tramitam estão também a previsão de monitoramento eletrônico de agressores com tornozeleiras e a inclusão da violação da intimidade da mulher na internet como forma de violência de gênero. Outras iniciativas falam em ampliar a rede de proteção a pessoas transexuais e transgêneros, além da garantia de gratuidade a cirurgias plásticas reparadoras a agredidos.

Gorete acredita que esse tipo de violência está perto de cessar. “A gente não tem mais nenhuma dúvida da importância da lei, reconhecida internacionalmente. As denúncias até aumentaram, mas isso é um sinal de que há mais coragem para fazer isso. Após esses dez anos, os dias de violência estão contados, porque estamos endurecendo aqui no Congresso.”

3 perguntas para Silvia Pimentel, jurista e uma das autoras da Lei Maria da Penha

1. Qual sua avaliação sobre a Lei Maria da Penha após uma década?

Temos de levar em consideração não somente a alta qualidade do texto legal, mas precisamos reconhecer que o mais difícil a alcançar é a mudança de mentalidade. Mudança de mentalidade da sociedade como um todo, dos responsáveis por políticas públicas efetivas e dos responsáveis pela criação de mais juizados. A mudança de mentalidade é o ponto-chave: por que a Lei Maria da Penha não foi tão implementada quanto poderia? A lei ainda precisa ser mais integrada ao imaginário coletivo. Isso não aconteceu.

2. Ela deve ter caráter punitivo? 

Cada caso tem de ser cuidadosamente estudado. Precisa de muita sensibilidade dos profissionais para poder avaliar quais são os homens que têm potencialidade de uma reeducação. Os crimes que envolvem a Lei Maria da Penha têm uma singularidade muito grande, porque envolvem um casal e, por isso, abarcam questões psicológicas e afetivas. As áreas da psicologia e da psicanálise precisam estar muito presentes, talvez até mais do que estão hoje, na lida desses casos de família. É possível existir afeto em uma relação agressiva. Há uma ambiguidade nas nossas paixões, tanto do homem para a mulher, quanto da mulher para o homem. Mas a agressividade com a qual trabalha a Maria da Penha é a agressividade de gênero, que advém da construção do papel social de subordinação que tem a mulher – não só na sociedade, mas nessa submicrosociedade que seria o casal.

3. A senhora é favorável a modificações no texto que estão em discussão?

Todo e qualquer aprimoramento tem de se dar não por meio de projetos de lei, que vão descaracterizar a consistência da Maria da Penha em torno das óticas preventiva e protetiva, mas de forma pública, que dê voz às mulheres de todas as partes do Brasil. A médio prazo, essa reflexão deve ser feita.